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Em sentença histórica, EUA «obrigado» a compensar Cuba por bloqueio

Colectivo de juízes decreta em Bruxelas que Estados Unidos violam leis de inúmeros tratados internacionais com bloqueio a Cuba.

O Tribunal Internacional contra o Bloqueio a Cuba decorreu nas instalações do Parlamento Europeu, em Bruxelas, entre 16 e 17 de Novembro de 2023
Créditos / Parlamento Europeu

O grupo de cinco juízes que presidiu ao Tribunal Internacional contra o Bloqueio, que decorreu em Bruxelas, decretou uma sentença histórica: o bloqueio dos EUA a Cuba viola, de facto, inúmeros artigos «sobre protecção de soberania, auto-determinação e proibição de intervenção» da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal de Direitos Humanos, e do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais, bem como «disposições sobre a protecção à liberdade de comércio» da Organização Mundial do Comércio, e «inúmeros princípios» do Tratado de Maastricht, da União Europeia.

O Tribunal concluiu que «as provas recolhidas de testemunhos, vídeos e documentos dão a impressão de um ataque concentrado às estruturas básicas da sociedade cubana, aos seus meios de subsistência e capacidades de desenvolvimento, que é único e sem precedentes na história, na sua duração e alcance». E decretou que «dado que as numerosas sanções e as leis dos EUA em que se baseia o bloqueio são ilegais, devem ser abolidas» e os «EUA devem pagar uma indemnização pelos danos causados ao Estado cubano, às suas empresas e aos seus cidadãos».

Conduzido pelo alemão Norman Paech, o colectivo de juízes convidado pelo governo cubano para presidir a este Tribunal, com o apoio do grupo GUE/NGL da Esquerda no Parlamento Europeu, ouviu, nos últimos dois dias, dezenas de testemunhos de cidadãos cubanos, europeus, latino-americanos e norte-americanos, empresários, investigadores, cientistas, especialistas em banca, finança, comércio internacional, ciência, saúde, cultura e cooperação sobre os impactos do bloqueio norte-americano.

Segundo o veredicto, o bloqueio dos EUA a Cuba viola direitos humanos, comerciais e sociais dos cidadãos cubanos e resultou, ao longo de mais de seis décadas, «directa ou indirectamente, na perda de inúmeras vidas humanas». Com a decisão «de manter este bloqueio até que o povo cubano decida não se curvar, os EUA parecem determinados a manter medidas calculadas para provocar a longo prazo a destruição física, pelo menos em parte, do povo cubano», uma atitude, concluem os juízes, que «poderá constituir crime de genocídio».

A resolução, lida por Norman Paech, diz que «o bloqueio, mesmo que lhe chamem embargo ou sanções, mina a vida, a liberdade, os direitos e a dignidade das pessoas e é um crime contra a humanidade. Os bloqueios são uma das formas de guerra mais falaciosas, ilegais e ilegítimas, mesmo que invoquem tratados e leis internacionais para camuflar a sua acção».

Os trabalhos do Tribunal Internacional contra o Bloqueio a Cuba, que decorreu nas instalações do Parlamento Europeu, em Bruxelas, entre 16 e 17 de Novembro de 2023, foram conduzidos pelo alemão Norman Paech Créditos / Parlamento Europeu

Nova etapa na luta contra o bloqueio

O advogado português Ricardo Avelãs Nunes foi um dos cinco juízes do Tribunal convidado pelo Governo cubano, e explicou ao AbrilAbril o significado deste veredicto: «O que nós decidimos foi uma sentença. Decidimos declarar estas medidas e o bloqueio ilegal. Ilegal porque viola muitos pactos internacionais e condenámos os EUA a levantar o bloqueio e a pagar a Cuba uma indemnização. Houve danos, foram provados, quer às pessoas, quer ao governo.»

O advogado admite, assim, que a decisão do Tribunal é «mais uma ferramenta para que todos nós, os nossos Estados e os democratas possam denunciar o bloqueio e exigir dos EUA, agora de forma fundamentada, legalmente, que levante o bloqueio. É uma sentença: tínhamos uma acusação, analisámos as provas e deliberámos.»

Visivelmente emocionado com o veredicto, o presidente do Instituto Cubano de Amizade entre os Povos (ICAP), Fernando González, afirmou a importância da realização do Tribunal no Parlamento Europeu, «onde lamentavelmente muitas vezes se adoptam medidas contra o nosso país». Reconheceu o «valor extraordinário» dos testemunhos no Tribunal que documentam «a vivência do impacto do bloqueio». «Impacta, inclusive em nós, cubanos, escutar estes testemunhos de europeus e norte-americanos que sofrem também as consequências do bloqueio [que] os lesa na sua soberania e dignidade como cidadãos», disse.

Para Cuba, esta sentença «profunda, séria, contundente e sustentada em evidências e testemunhos, e suportada pela interpretação da lei internacional» é agora um «documento de trabalho essencial» porque «oferece com força e qualidade uma argumentação condenatória do bloqueio», que «nos permite, e a quantos decidirem levá-lo a diferentes instituições, parlamentos nacionais, organizações, argumentar, abrir mentes, abrir portas e avançar na luta pelo levantamento definitivo do bloqueio».

Este veredicto não é um «documento juridicamente vinculativo», diz Fernando González. «Mas também não o são as resoluções da ONU, se fossem vinculativas estaríamos a viver noutro mundo e não neste». É, contudo, um passo que «pode ajudar-nos a aproximar-nos de alcançar essa vitória de justiça, de paz e de direito de todo um povo a decidir por si mesmo o seu próprio destino e a sua maneira de organizar-se, sem que ninguém, por poderoso que seja, lhe imponha uma agenda, e muito menos trate de o fazer por vias criminosas, anti-democráticas e perversas, como os EUA tentam impor a Cuba».

Sandra Pereira, deputada do PCP ao Parlamento Europeu, que esteve envolvida na convocatória e organização do Tribunal, reconhece também a importância simbólica «deste veredicto no Parlamento Europeu, onde tantas vezes se fazem manobras vergonhosas para ocultar o que se passa em Cuba». A eurodeputada disse que o documento final será útil «em matéria de legislação e de resoluções» nos vários países da UE, «para colocar perguntas à Comissão Europeia e em todos os espaços que temos usado para defender Cuba e o seu direito ao desenvolvimento».

Na mesa do Tribunal Internacional contra o Bloqueio a Cuba, que decorreu nas instalações do Parlamento Europeu, em Bruxelas, entre 16 e 17 de Novembro de 2023, esteve o português Ricardo Avelãs Nunes (à direita) Créditos / Parlamento Europeu

Portugal e o seu direito de soberania

Uma das testemunhas no processo foi a jurista portuguesa Madalena Santos, Presidente da Direcção da Associação Portuguesa de Juristas Democratas, que explicou no seu depoimento que a «aplicação das medidas coercivas unilaterais por parte dos EUA ao Estado cubano, a empresas públicas e pessoas cubanas, principalmente na sua dimensão extraterritorial, carece de legitimidade internacional, uma vez que nenhuma instância com competência decretou a legitimidade de tais medidas».

Mas a aplicação do bloqueio norte-americano impede igualmente o cumprimento da lei portuguesa, explica a jurista, nomeadamente o artigo 7.º da Constituição da República, que define que «Portugal se rege nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados e na cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade».

Ao afirmar este princípio de solidariedade na Constituição, «o que está a suceder com o bloqueio dos Estados Unidos é que, através de uma intervenção externa, se está a impedir a aplicação do nosso artigo 7.º», diz a jurista ao AbrilAbril. Ou seja, o Estado português «afirma certos e determinados princípios de soberania total, e até especifica como se pratica essa soberania e as suas diferentes etapas, mas depois através da intervenção de um país externo, em legislação interna sua sobre o boicote [a Cuba], impede que Portugal aplique, nas suas relações externas, o artigo 7.º», explica.

Assim, Madalena Santos é peremptória ao afirmar que «o Estado português tem de exercer a sua soberania» porque o bloqueio é uma «lei paraquedas que incide sobre o território de outro país, violando também a soberania portuguesa». A jurista defende que «o Estado português tem de ser muito afirmativo e dizer aos EUA: “Meus senhores, vocês não são os polícias do mundo, o nosso artigo 7º protege-nos, até, e vocês não podem impedir que o nosso artigo 7º se aplique nas relações externas com qualquer país do mundo. Nós é que decidimos”.»

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